A sede secreta dos meme e virais: Como a Inteligência Artificial desafia o consumo consciente de água

Ilustração criada digitalmente

Em um mundo saturado pela cultura digital, as trends virais e memes gerados por inteligência artificial (IA) representam o ápice da efemeridade: uma imagem ou texto criado em segundos, compartilhado por milhões e esquecido em horas. Esta percepção de imaterialidade, no entanto, mascara uma profunda realidade física. A ideia de que a internet reside em uma “nuvem” etérea é uma das metáforas mais enganosas da era moderna. Na verdade, cada clique, cada busca e cada meme acionam uma vasta e faminta infraestrutura de edifícios, cabos e servidores que consomem recursos naturais em uma escala alarmante.   

O custo mais invisível e, talvez, o mais preocupante, é o hídrico. A conexão entre o mundo virtual e os recursos hídricos do planeta torna-se chocantemente clara com um simples exemplo: a geração de um e-mail de 100 palavras utilizando uma plataforma como o ChatGPT pode consumir aproximadamente 519 ml de água. Este dado transforma o abstrato em concreto, revelando que nossas interações digitais mais triviais deixam uma pegada hídrica real e mensurável. A era da IA, com seu poder computacional sem precedentes, está nos forçando a confrontar uma verdade incômoda: a inovação tecnológica tem sede, e essa sede está crescendo a um ritmo exponencial.   

A fisicalidade da nuvem: datacenters e a demanda por refrigeração

A “nuvem” nada mais é do que uma rede global de datacenters, estruturas físicas que podem ocupar desde uma sala até edifícios inteiros, abrigando os servidores que processam, armazenam e distribuem as informações que sustentam nossa vida digital. Assim como um computador pessoal, esses servidores geram uma quantidade imensa de calor ao operar. A dissipação eficiente desse calor não é uma questão de otimização, mas de sobrevivência operacional; o superaquecimento levaria a falhas de hardware em cascata, interrompendo os serviços dos quais a economia e a sociedade modernas dependem.   

Para combater este calor incessante, os datacenters empregam sistemas de refrigeração robustos. Embora o ar-condicionado tradicional seja uma opção, ele é notoriamente intensivo em energia. Por isso, muitas instalações, especialmente as de grande escala, recorrem à água como meio de refrigeração. O método mais comum é o resfriamento evaporativo, onde a água é utilizada para resfriar o ar ou circuitos fechados de líquidos.

Este processo é energeticamente mais eficiente e emite menos carbono do que as alternativas baseadas apenas em ar. Contudo, essa eficiência tem um custo hídrico significativo: uma grande parte da água utilizada evapora durante o processo e não pode ser reutilizada, gerando um consumo contínuo e massivo de água doce, frequentemente retirada de sistemas públicos já sobrecarregados.   

A relação entre o consumo de energia e o de água é direta e quantificável. Estima-se que para cada kilowatt-hora (kWh) de energia que um datacenter consome, podem ser necessários até dois litros de água apenas para o resfriamento. Esta métrica estabelece um elo indissociável entre a pegada de carbono e a pegada hídrica da tecnologia, demonstrando que a sustentabilidade no setor digital deve ser abordada de forma holística.   

Quantificando a sede virtual: Os dados por trás da pegada hídrica da IA

A pegada hídrica da inteligência artificial, por muito tempo um segredo bem guardado pela indústria de tecnologia, está finalmente vindo à tona, e os números são assustadores. O consumo de água ocorre em duas fases principais: o treinamento intensivo dos modelos e o seu uso diário contínuo, conhecido como inferência.

Para treinar um único modelo de linguagem grande (LLM), como o GPT-3 da OpenAI, o investimento hídrico inicial é colossal. Pesquisas revelam que apenas o processo de treinamento pode ser responsável pela evaporação direta de 700.000 litros de água doce e limpa nas instalações do datacenter. Quando se considera a pegada hídrica indireta — a água utilizada na geração da eletricidade massiva necessária para o treinamento — o número total para treinar o GPT-3 salta para impressionantes 5,4 milhões de litros de água.   

No entanto, o custo do treinamento, embora enorme, é um evento único por modelo. A verdadeira crise hídrica da IA reside no seu uso diário e cumulativo por bilhões de pessoas. 

Uma trend viral consumiu milhões de litros em 2025

A crescente popularidade de ferramentas de Inteligência Artificial, como as que geraram a “trend” de imagens no estilo Studio Ghibli, revela um impacto ambiental significativo no consumo hídrico. O Moon BH analisou um estudo da universidades de Colorado Riverside e Texas Arlington, nos Estados Unidos, e identificou que a produção por todos os usuários ao redor do mundo, dessas imagens, consumiu cerca de 216 milhões de litros de água em apenas uma semana, o equivalente ao consumo mensal de uma pequena cidade.

Este volume alarmante é resultado da necessidade de resfriamento dos data centers que abrigam os servidores de alto desempenho, essenciais para o funcionamento da IA. Pode ser complexo entender o que estamos falando. Por isso, o Moon BH produziu uma animação (com AI), explicando em 2 minutos, de forma simples, sobre o que estamos falando. Veja abaixo:

Estudos complementares indicam que cada 20 a 50 perguntas feitas ao ChatGPT, ou cada imagem gerada, podem demandar até 500ml de água, projetando um consumo global de 4,2 a 6,6 bilhões de metros cúbicos de água pela IA até 2027. Tal cenário sublinha a urgência de considerar a pegada hídrica da inteligência artificial no debate sobre sustentabilidade tecnológica.

Este padrão de consumo crescente reflete-se nos relatórios corporativos. Em 2022, os datacenters próprios do Google consumiram quase 20 bilhões de litros de água para resfriamento, um aumento de 20% em relação a 2021.

A projeção para o futuro é ainda mais alarmante. Estima-se que, até 2027, a demanda global da indústria de IA possa ser responsável por uma retirada de água entre 4,2 e 6,6 bilhões de metros cúbicos anualmente. Para contextualizar, este volume é superior à retirada anual total de água de nações como a Dinamarca e equivale a quase metade da retirada anual do Reino Unido.   

A análise desses dados revela uma dinâmica complexa que muitas vezes é simplificada em excesso no debate público. A atenção da mídia tende a se concentrar nos números chocantes do treinamento de modelos, pois representam um valor único e massivo. Contudo, o custo hídrico da inferência, embora menor por interação, é multiplicado por bilhões de usuários globalmente, todos os dias.

A longo prazo, o impacto ambiental cumulativo do uso da IA provavelmente superará em muito o custo de criar novos modelos. Relatórios de sustentabilidade corporativos e debates que se focam exclusivamente na eficiência do treinamento estão, portanto, a ignorar a parte mais crítica e duradoura do problema: a pegada hídrica da implantação em massa.

A nova fronteira do Brasil: O desafio da infraestrutura de IA

Foto: reprodução

O Brasil encontra-se em uma posição estratégica e, ao mesmo tempo, precária na corrida global pela supremacia em IA. O governo brasileiro tem manifestado a ambição de atrair grandes empresas de tecnologia e investimentos em datacenters, utilizando a matriz energética predominantemente renovável do país como um grande atrativo. No entanto, esta estratégia representa um dilema ambiental de alto risco.   

A chegada dos primeiros projetos de datacenters adaptados para IA, que começam a tomar forma, impõe um desafio imediato e intensivo ao uso de água e energia. A promessa de crescimento econômico e avanço tecnológico vem acompanhada de um “ônus ambiental” significativo.

A atração de uma indústria inerentemente sedenta por água cria um conflito direto entre os objetivos de desenvolvimento tecnológico e a necessidade urgente de uma gestão sustentável dos recursos hídricos nacionais, especialmente em um contexto de crescente estresse hídrico e mudanças climáticas.   

Inovando para uma Nuvem Mais Fria: O Futuro dos Datacenters Sustentáveis

Diante da crescente pressão ambiental, a indústria de tecnologia está a explorar uma gama de inovações para mitigar a pegada hídrica e energética dos datacenters. As soluções vão desde otimizações de sistemas existentes até paradigmas de refrigeração completamente novos.

Melhorias em sistemas de refrigeração a ar, como o “free cooling” — que utiliza o ar externo frio para resfriar as instalações, reduzindo a necessidade de refrigeração mecânica — e a contenção de corredores quentes e frios para evitar a mistura de ar, representam avanços incrementais importantes.   

Contudo, a verdadeira revolução está na transição para a refrigeração líquida, uma tecnologia essencial para gerir as densidades térmicas extremas dos servidores de IA modernos, que podem ultrapassar os 50 kW por rack. A refrigeração líquida, que pode ser até 3.000 vezes mais eficiente na transferência de calor do que o ar, manifesta-se em duas abordagens principais: a refrigeração direta no chip (direct-to-chip), onde o líquido circula através de placas frias montadas diretamente nos processadores, e a refrigeração por imersão, uma técnica mais radical que submerge completamente os servidores em fluidos dielétricos não condutores.   

Olhando para um futuro ainda mais sustentável, a inovação vai além da simples dissipação de calor, buscando a sua reutilização. Uma colaboração entre a Hewlett Packard Enterprise (HPE) e a Danfoss resultou no desenvolvimento de módulos de recuperação de calor.

Esta tecnologia captura o calor residual dos datacenters e, em vez de o desperdiçar na atmosfera, redireciona-o para aquecer edifícios residenciais e comerciais próximos. Esta abordagem transforma um subproduto problemático em um recurso energético valioso, alinhando a operação dos datacenters com os princípios de uma economia circular.   

Do consumo inconsciente a um clique consciente

Retornamos ao meme, ao clique, à interação digital aparentemente sem peso. A jornada pelos corredores físicos e sedentos da nuvem revela que cada uma dessas ações tem um custo real. Embora a responsabilidade individual de moderação seja parte da equação, o ônus principal recai sobre a indústria de tecnologia.

As empresas que desenvolvem e implementam IA têm a obrigação de operar com total transparência sobre suas pegadas hídrica e energética e de investir agressivamente em tecnologias sustentáveis, desde a refrigeração líquida até a recuperação de calor.   

Para o resto da sociedade, o desafio é cultural. É preciso abandonar a noção de que o mundo digital é imaterial e gratuito. A conscientização sobre o custo hídrico oculto em cada pesquisa, em cada streaming e em cada meme é o primeiro passo fundamental. Somente com essa consciência coletiva será possível gerar a pressão social e política necessária para exigir um futuro tecnológico que não seja apenas mais inteligente, mas também mais responsável e sustentável.