No coração do Centro de Belo Horizonte, na Rua dos Caetés, reside uma história que se confunde com a própria fundação e desenvolvimento da capital mineira: a da Casa Salles. Com 144 anos de existência, sendo 120 deles no mesmo local na capital, a loja é mais do que um estabelecimento comercial; ela é um testamento vivo da evolução do comércio e seu papel transformador na cidade.
Edmar Viana de Salles, da terceira geração da família, nascido em 1928, testemunhou as profundas transformações do centro da cidade, especialmente da Rua dos Caetés, que ele descreve como “uma das mais vivas de Belo Horizonte” desde que era menino. Ao longo das décadas, o comércio se consolidou como o motor do desenvolvimento urbano e econômico da cidade, atraindo pessoas de toda Minas Gerais, impulsionando o transporte público e incentivando a construção de edifícios, hotéis e restaurantes. “Belo Horizonte cresceu para atender o fluxo de quem vinha comprar, vender, trabalhar e viver aqui”, lembra Edmar.
O comércio como coração da capital mineira
Em uma era anterior à internet e aos grandes shoppings, o comércio era, de fato, a alma do Centro. Pessoas de todos os cantos do estado convergiam para a capital, hospedavam-se nos hotéis, circulavam pelas ruas repletas de vitrines e, ao partir, levavam consigo não apenas mercadorias, mas também a cultura de Belo Horizonte para suas cidades de origem. O Centro se tornou o “grande ponto de encontro do mineiro”, forjando muito da identidade da cidade, o jeito de conversar, de negociar e de receber bem.

esquina das Ruas São Paulo e Caetés. Na foto, a família Salles.
Foto: acervo pessoal
O comércio não foi apenas um setor econômico em Belo Horizonte, mas o verdadeiro motor do desenvolvimento urbano e econômico da cidade, moldando sua identidade e transformando-se no seu “coração” pulsante. A história do comércio em BH se entrelaça com a própria história da cidade, crescendo junto com seus costumes e tradições.
A Casa Salles foi uma parte viva desse processo centenário. Mesmo antes da fundação oficial de Belo Horizonte em 1897, a loja já atendia mineiros de diversas regiões. Considerada uma das mais importantes de Minas Gerais em sua época, a Casa Salles abastecia fazendas, armava caçadores e equipava viajantes. Mais do que isso, a loja se tornou uma “escola de ofício”, formando inúmeros aprendizes e balconistas que levaram os valores de confiança, palavra empenhada e respeito para outras casas comerciais, moldando o comércio da cidade.
“Eu costumo dizer que o Centro de Belo Horizonte não seria o mesmo sem o comércio e o comércio não seria o mesmo sem lojas como a Casa Salles. Nós ajudamos a movimentar a economia, a criar empregos, a trazer gente de fora e a integrar Minas. Mas mais do que vender produtos, ajudamos a construir a cultura de Belo Horizonte”, se entusiasma o senhor Edmar Salles.
Tradição e conexões humanas no centro histórico
A Casa Salles não é apenas uma loja; é um ponto de parada obrigatória e uma tradição familiar para muitos belo-horizontinos. Raquel Ferreira, diretora do Servas, lembra de acompanhar sua mãe nas compras e sempre passar na Casa Salles para comprar e amolar facas e alicates. Mais tarde, já adulta, a loja se tornou o lugar onde ela e o marido compraram chumbinho e onde conheceu o Sr. Salles, que a atendeu pessoalmente e a incentivou com paixão a ver o tiro esportivo além de uma brincadeira. Para Raquel, a Casa Salles representa “tradição, paixão pelo comércio e essas conexões humanas que só o centro da cidade proporciona”.
Mais do que uma loja, a Casa Salles foi o ponto de encontro entre gerações, onde escolhas simples se transformaram em memórias eternas. “Em 1984, acompanhei meu pai, o médico Iran Rêgo, em uma viagem a Belo Horizonte para comprar uma arma antes de uma pescaria no Araguaia. Estávamos na imensa Mesbla, onde ele quase fechou negócio, até que um senhor se aproximou e recomendou: ‘Desce ali na Casa Salles, é aqui pertinho… lá tem coisa melhor!’ Atravessamos a Afonso Pena e chegamos à loja. Para mim, uma criança de 10 anos, ela parecia pequena diante da grandiosidade da Mesbla, mas ali meu pai comprou um revólver ROSSI .38, um saco de dormir e um cantil que mais tarde me acompanhariam em acampamentos escoteiros. Hoje entendo que, mais do que produtos, a Casa Salles nos entregou uma lembrança que carrego com afeto até hoje,” relembra Rodrigo.

avô e agora frequenta com o filho.
Foto: acervo pessoal
Essa conexão intergeracional é um dos pilares da Casa Salles. Rodrigo Rego, cliente da loja, expressa a alegria de retornar com o filho, assim como ia com seu avô e pai. Guilherme Salles, o atual proprietário e representante da quinta geração da família, é profundamente tocado por essa fidelidade: “isso é muito frequente. Quando um avô leva seu neto para conhecer a loja que ia com seu falecido avô, por exemplo, e se emociona, é uma das horas que eu mais me arrepio”.
O segredo da longevidade: confiança, adaptação e mineiridade
A Casa Salles foi fundada em Ouro Preto em 1881 pelo tataravô de Guilherme, João dos Salles, um tropeiro que, após um ato de honestidade (devolver um pote de ouro confiado a ele), recebeu autorização de Dom Pedro II para abrir seu comércio. A loja, inicialmente um “secos e molhados” que vendia de tudo: de gelo e grãos a mulas e armadilhas, mudou-se para Belo Horizonte em 1904, a convite (e pressão) do governo, tornando-se uma das primeiras e mais conceituadas lojas da recém-fundada capital.

Foto: acervo pessoal
A longevidade da Casa Salles, que sobreviveu a impérios, guerras mundiais, ditaduras, crises econômicas e pandemias como a COVID-19, é um feito notável. Guilherme Salles atribui essa resiliência a alguns fatores-chave:
Perseverança: “É acreditar no futuro sempre, sempre, sempre. Fé, trabalhar com muita fé, porque momentos muito ruins aconteceram no Brasil”.
Diversificação de Fontes de Renda: O bisavô de Guilherme, um grande empreendedor, sempre manteve pelo menos três fontes de renda (imóveis, investimentos externos e o comércio) para garantir a estabilidade em tempos de crise.
Capacidade de Adaptação: A Casa Salles soube se reinventar. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, com a escassez de mercadorias, a loja se tornou referência em armas de fogo, que eram vistas como ferramentas para subsistência e defesa, e não para violência, adaptando-se às necessidades do mercado.
O Apoio do Belo-horizontino: A loja se manteve em Belo Horizonte, sem grandes expansões, porque o cidadão da capital sempre a abraçou nas crises, reconhecendo-a como parte da identidade local.
A sucessão familiar é outro desafio superado. Guilherme é a quinta geração a liderar a loja. Ele explica que a transição nem sempre foi linear, com seu avô Edmar (terceira geração) trabalhando até os 90 anos e não abrindo espaço para os filhos. Guilherme, que cresceu na loja desde os 3 anos de idade, assumiu a frente quando a Casa Salles enfrentava dificuldades tecnológicas e financeiras, determinado a não deixá-la fechar. Ele se vê não como o “dono”, mas como um “companheiro” da Casa Salles, uma entidade que o criou.

quinta geração e a primeira caixa
registradora de Belo Horizonte.
O Futuro da Casa Salles e a Revitalização do Centro
Guilherme Salles, com sua mentalidade inovadora, está empenhado em manter viva a identidade e a essência da Casa Salles enquanto olha para o futuro. Ele reconhece que a loja original, com seus móveis e exposições antigas, a máquina registradora de 1904 (a primeira de Belo Horizonte) e os pôsteres dos anos 1930, faz parte da “identidade de Belo Horizonte” e, portanto, deve ser preservada.
Seus planos incluem:
Relançar o conceito de “Secos e Molhados”: A Casa Salles pretende oferecer o que há de melhor e mais tradicional em Minas Gerais, como pão de queijo, queijo, doce de leite, café, azeite e vinho, sob a marca “1881”, levando a “cultura maravilhosa” de Minas para o Brasil e o mundo.
Presença digital: A loja está investindo em um site e um marketplace para alcançar um público mais amplo.
Turismo e conexão com o jovem: Guilherme busca atrair o público mais jovem conectando a marca à aventura e ao turismo em Minas Gerais, incentivando a exploração da Estrada Real, trilhas e cachoeiras, e promovendo itens tradicionais como canivetes de forma moderna.
Revitalização do Centro de BH: Guilherme é um ativista pró-Centro. Ele critica o histórico de políticas urbanas que visavam esvaziar a região e mover o PIB para cidades vizinhas, resultando em um centro percebido como sujo e violento. Ele acredita que o centro tem grande potencial e propõe soluções práticas com combater a sujeira, pichações e o mau cheiro que afetam a imagem do centro. A melhoria da iluminação instalando luzes mais baixas e incentivar a contribuição privada para aumentar a segurança. A mobilidade urbana noturna com a volta da circulação de ônibus após as 19h para que as pessoas possam se locomover e frequentar o centro à noite. E incentivar moradias com aluguéis acessíveis para jovens e profissionais de tecnologia, além de trazer de volta as empresas que se mudaram para outras áreas.
Guilherme sonha com um Centro vibrante, que concilie sua rica história com a modernidade, como acontece em grandes cidades europeias. Ele vê o Mercado Novo como um exemplo de revitalização bem-sucedida, impulsionada pela iniciativa privada e apoio público. “Belo Horizonte não é uma cidade velha. Belo Horizonte não pode estar suja e acabada. Belo Horizonte tem que estar limpa, alegre, tem que ser a cidade do carnaval, tem que trazer mais eventos, mais cultura. O centro precisa vibrar”, desabafa Guilherme.
A Casa Salles, um marco na história de Belo Horizonte, continua a desempenhar um papel fundamental na construção da identidade e do futuro da cidade, provando que o comércio é muito mais do que lucro: é história, cultura e a alma de um povo. Que venham os próximos séculos!























